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Lembranças

Naquela época, eu era um quase adolescente sentado num banco de madeira, pintado de azul, numa igreja pequena. No alto do altar, fixado em um dos perfis que sustentava o telhado, havia uma placa com as letras pintadas à mão e com os dizeres: “Não há salvação em nenhum outro. (Atos 4.12)”. O púlpito era de madeira maciça. Não havia forro no teto e um único ventilador no altar tentava refrescar o ambiente nos dias quentes. Janelas do tipo venezianas, pequenas para o local, ocupavam as paredes do imóvel.

Duas moças com vestidos longos de mangas compridas. Com uma mão, seguravam os microfones em frente às bocas; com a outra, enrolavam os cabos dos microfones nos dedos. Elas tinham os cabelos longos, não usavam maquiagem nem tinham as unhas pintadas. Diante da igreja, cantavam. Em certos trechos da canção, dividiam as vozes formando o acorde em linda harmonia. Era uma das poucas ocasiões em que as mulheres eram protagonistas durante o culto: o momento das oportunidades.

Os pastores e presbíteros, em seus ternos e gravatas, sentados nas cadeiras no altar, balançavam a cabeça seguindo o ritmo da música ou soltavam um “Glória a Deus!” estrondoso vez por outra. As pessoas na igreja, sentadas em bancos, tinham os olhos fitos nas moças. O poema cantado falava sobre a mudança que acontece na vida do cristão quando ele é achado por Jesus: “No momento em que aceitei ao meu Jesus, minha vida logo se modificou.”. 

Essa cena me veio do nada enquanto tomava banho depois de um dia cansativo. E como lembranças que surgem de tempos distantes, essa pode ser uma recordação imprecisa. Mas isso não importa. Se algum dos meus companheiros daquela época quiserem me corrigir, fiquem à vontade. 

De alguma maneira que não sei explicar, no banho, comecei a cantarolar a música que aquelas moças estavam cantando numa noite de culto, há uns trinta anos. Era uma música que eu mesmo nunca havia cantado porque eu apenas ouvia.

Comecei devagar. Cantei algumas vezes até que umas poucas partes da música ficaram ausentes.

Nostalgia.

Corri ao YouTube para ouvir a música original e ver se minha mente não estava me pregando peças. Será que eu estava mesmo cantando a letra certa? Cantando uma música que eu ouvia, mas que nunca cantado? Uma música que havia uns trinta anos que eu não escutava? Uma busca provou que eu estava certo: Viverei Viverás, Grupo Nova Dimensão, final dos anos 1980 (https://youtu.be/_FpiI_d91Sk). Eu estava revivendo uma música ouvida há mais de três décadas. Eu estava cantando a música!

Somos feitos de lembranças que estão adormecidas dentro de nós. Mesmo quando não as percebemos, mesmo que elas não sejam uma fotografia na parede ou tenham um lugar de destaque, nosso passado está bem aqui no nosso presente. Alguns podem preferir chamar essas coisas de experiências e não de lembranças. E tudo bem se você preferir chamar por outro nome. Mas elas estão aqui mesmo depois de bastante tempo… 

Percebo a força dessas lembranças quase esquecidas quando releio alguns dos sermões que já preguei. Depois que o calor da preparação e da pregação passa, percebo que muitas das ideias apresentadas ali foram, bem dizendo, o resultado dos vários livros, sermões, músicas e devocionais que já experimentei. Mesmo quando não me lembro de que já li ou ouvi algo parecido antes, aquela lembrança, inconscientemente, pode saltar da minha memória e se tornar um tópico do sermão.

É assim com tudo na vida: as lembranças saltam dos baús onde estão guardadas feito milho pipocando na panela quente. Às vezes, nós as percebemos; outras vezes, não. Elas podem surgir como seres invisíveis, não vistos, mas percebidos e capazes de suscitar sentimentos e reações. 

Triste é quando as lembranças não são boas. E nos impactam de maneira ruim, nos roubando oportunidades e atrasando nosso crescimento. Quando isso acontece, a gente precisa construir novas recordações para que não sejamos dominados pelos fracassos e decepções de antes.

Enquanto o Youtube ia tocando vídeos e vídeos seguindo seu algoritmo de recomendações, reconheci muitas outras músicas daquela época de quase adolescência. E mais lembranças me vieram à mente. Gente sorrindo, grupos cantando diante da igreja, a simplicidade das instalações do templo, as roupas que já foram moda e que, hoje, são consideradas ridículas, os congressos nas escolas e as pessoas que nunca mais eu vi. 

Tudo isso ainda está aqui dentro de mim. Carrego tudo e todos comigo mesmo quando não estou ciente disso. Eles e elas me moldam e eu os modelo de volta numa obra conjunta chamada viver.

E você? Que lembranças lhe vêm à mente hoje?



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